O Filho da Mãe entra em palco. Sozinho, viola na mão, rodeado de escuro, um Teatro Maria Matos cheio e atento, e um conjunto de pedais. No dia 24 de Maio, uma lotação esgotada saiu rendida ao tremendo espetáculo colocado por Rui Carvalho, agora a solo (enquanto integra os If Lucy Fell), depois de uma digressão por todo o país.
Entra sozinho armado de guitarra e um sorriso tímido, olhar baixo, que depois desliza para as tarraxas da sua guitarra para a afinar. Começa com o tema “Não Sei Desenhar Barcos”, debruçado, a dedilhar com facilidade as cordas como se cabelos fossem. A intensidade da música que Rui Carvalho dispõe é alta do princípio ao fim, e assim o é incansavelmente, tanto nas notas que a sua guitarra canta como na sua postura, balançando o seu peso em cima da cadeira, batendo o pé de acordo com o ritmo que mais lhe convém. O riacho de músicas que se seguem arrasta a precisão que vai desde o polegar esquerdo ao dedo mindinho direito, e sem tréguas, não dá espaço para respirar: inunda o teatro com a sua música e o público aceita com entusiasmo esse cerco e esse afogo que o deixa sem fôlego. Este mantém-se imóvel no seu lugar e quase não pestaneja, à espera de algum erro, de uma pausa que poderá ditar que o guitarrista à frente deles é apenas um guitarrista qualquer.
Já o Filho da Mãe arranha as cordas, fá-las cantar e gritar com um ritmo que balança (como o próprio guitarrista, de olhos fechados) entre o rock, o blues, e consegue retirar com uma simples guitarra clássica, a sonoridade da complexa guitarra portuguesa.
Antes de começar o tema “Quis não Quis”, Rui apresenta-o – é a primeira vez que ouvimos a sua voz, mas a audiência sente que já assistiu a uma importante conversa. Ou um desabafo, em que o público compreendeu que era um momento de confidência no qual era só preciso escutar. E os blues fazem uma paragem pelas casas de fado de Alfama. Enquanto muitos prezam pela simplicidade do acústico, Rui Carvalho decide puxar um lençol enorme de complexos sons e trinares, como se o Mississipi desaguasse em Lisboa. “Encontrei os teus Dentes” traz um tom mais romântico, e depois, porque afinal, sim, não é de ferro este guitarrista, arranca uma parte da unha lascada, aproveita para agradecer. O público dá-se conta de que está perante uma pessoa, não está a ver um filme ou algo extremamente editado (embora o trabalho «Palácio» seja fruto de cuidadosos anos). “É um prazer, obrigada às pessoas aí atrás, que andam também a roer as unhas. É um dia especial, e é bom poder celebrar”, diz. É um homem de poucas palavras, mas muitas notas a pedirem para se soltarem desenfreadamente.
O truque parece mesmo transformar a imperfeição em algo não perfeito, mas bonito – a ideia de que a perfeição é igual à estética aprazível parece muito longe do conceito por trás das canções de Filho da Mãe. Brinca com sons da guitarra que muitos músicos perfeccionistas considerariam erros, falhas, e fariam um esgar ao ouvi-los. E fá-lo humildemente, sem o espalhafato que muitos artistas oferecem ao público porque crêm que é isso que querem. Aqui, integraram-se “apenas” as notas, os pedais, os pequenos gritos sob os dedos quando deslizam pelas cordas e pelos acordes, até o bater na madeira da guitarra e valentes pontapés no palco. É verdadeiro, é cru e é bonito. Depois de arrumar a casa, diz “vamos lá ver se consigo tocar esta”, e começa a tocar “Vaca Velha”, de uma elaboração tão activa e baseada na coordenação entre os vários pedais e o ritmo da canção que leva o público ao êxtase. E pelos vistos, também os pedais, pelo que Rui admite que um deles desistiu. Entra de novo à carga com “Helena Aquática”, um tema bastante reconhecido entre os membros da audiência, levando-o de volta para um profundo ambiente subaquático.
Mas apesar de se tratar de um concerto dominado por Filho da Mãe, entram em cena dois convidados, e depois, mais três. Primeiro Shela, nos teclados, e João Nogueira, juntando-se em tandem quando toca, usa e abusa de todas as partes da sua guitarra. É assim que começa um jogo de várias catarses, e embora tenha sido objecto de alguma incredulidade e intriga primeiramente, a performance manteve-se intrínseca, equilibrada e detalhada. Só no fim é que se transforma num duelo, mas em vez de competitivo o que vemos é uma pequena jogatina entre irmãos de armas e instrumentos.
Junta-se ao grupo dois baixos, Cláudia Guerreiro e Makoto Yagyu, e uma bateria, tocada por Hélio Morais. Aqui Rui Carvalho assume uma posição central, mas como o centro de um elaborado quadro, mesclando-se em uníssono como se navegassem no mesmo barco. Agora munido de baixos, teclas e bateria, o grupo complementa-se uns aos outros, e as canções, embora sempre complexas, distribuem-se também por forma igualitária, sem perder qualquer intensidade. Essa não muda, nem que seja só no pulsar da música, que fez com que o público pedisse mais, de pé, só abandonando o seu lugar depois de ter sido indicado que não, de facto não ia haver encore.
E cá fora, silêncio, pois os ouvidos do público tinham sido enchidos e satisfeitos por muita música, e os seus membros andavam como se carregassem um copo cheio de água até ao rebordo, pelo que caminhavam muito cuidadosamente nas palavras que diriam a seguir. Até alguém não parecer aguentar e dizer aquilo que todos pensavam. “O gajo dá-lhe muito forte, pá”.
Alinhamento:
Não sei desenhar barcos
Eusébio no deserto
Quis não quis
Encontrei os teus dentes
Sobretudo
Pomada 1
Tema sem título
Vem devagar (leva tudo)
Vaca velha
Helena aquática
Talento hepático
De prego em prego, de pé em pé
Fazer para desistir
Tema sem título
Texto: Carolina Rocha
Agradecimento: Teatro Maria Mato
Músico: Filho da Mãe
Local: Teatro Maria Matos, Lisboa
Data: 24 de Maio de 2012
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