[ENTREVISTA]: WRAYGUNN



O verdadeiro artista...

Poderia começar-se esta entrevista com um “it was a dark and stormy night”, para despachar logo com o cliché. Os Wraygunn, representados por Paulo Furtado e Selma Uamusse, passaram o dia a fazer entrevistas sob raios e trovões e uma chuva não muito miúda num café no centro de Lisboa, até que depois das 6 e meia da tarde, Furtado, vestido com o icónico casaco de cabedal, tira os óculos de sol. Selma confessa não conseguir fazer mais nenhuma entrevista a seguir a esta, com boa desculpa, e pede um chá e uma torrada para o lanche.

Prometo ser rápida e tentar não incidir em perguntas já muito gastas. Com a apresentação do novo álbum «Art Brut», no Lux Frágil, em Lisboa, no passado dia 17, começo por lhes perguntar se têm rituais e hábitos antes dos concertos. Tanto Paulo como Selma falam nos abraços, nos momentos de concentração, e Paulo confessa: “Antes de um primeiro concerto de apresentação de um disco passo o dia a berrar com as pessoas.” Selma anui, diz que ele também não come. “Mas depois peço muitas desculpas às pessoas com quem berrei,” continua, “a não ser que tenha berrado pelas coisas certas.”

E isso é tudo nervosismo? “Se não ficasse nervoso antes de um concerto era mau sinal.”

Selma tenta explicar o que se sente antes de se puxar a cortina. “Ficamos sempre um bocadinho nervosos antes dos concertos e isso nota-se na maneira como lidamos uns com os outros. Estamos meio desligados. Tentamos não ficar demasiado próximos ou demasiado bem, porque tudo aquilo que não fazemos antes acaba por acontecer depois em palco, e acho que resulta muito bem.”

Depois desta apresentação no Lux, os Wraygunn deslocam-se a Coimbra, Tondela e Porto, para depois partirem para terras francesas, e voltarem para mais uma digressão nacional. “Já temos muitas coisas marcadas, e acho que [as pessoas] estavam mesmo com saudades dos Wraygunn, tanto o público como os produtores de espectáculos,” diz Paulo Furtado, que esteve em digressão a solo como The Legendary Tigerman, passando até em festivais como o Super Bock Super Rock.

Furtado mostra-se muito consciente sobre o que as pessoas sentem em relação à cultura nos dias de hoje. “É uma coisa que nunca sabes, se as pessoas estão disponíveis para ti, e principalmente nos dias que correm: há tanta coisa a acontecer e as pessoas têm cada vez menos capacidade financeira para poder comprar um disco ou um livro, ou poder ver um concerto ou ir ao teatro... às vezes não sabes muito bem como vão correr as coisas, e portanto o facto de estarem a correr bem quer dizer que efectivamente as pessoas estão com saudades nossas.”

“Nós também estamos com saudades delas.” Adicionam os dois, entre risos.

Continuando sobre esse tema, o palco, Paulo revela que prefere arrancar tudo do público, menos indiferença. “Para nós, que a música é tão fulcral e tão primitiva, os Wraygunn são uma banda que se não tiverem a atenção do público, tudo deixa de fazer muito sentido. Prefiro entrar em confronto com o público, prefiro uma reacção do que estar ali a olhar, como se fosse para uma televisão. Acho que um concerto deverá ter essa componente, quase de risco, de ser uma coisa que te alerte, que te toque e mexa contigo. Se não for assim não faz sentido nenhum.”

Afinal, tigres ou não, os Wraygunn são artistas que gostam de ir à luta. “Eu gosto de quando o público é difícil, de “converter” um público que não está à partida receptivo.”

Mesmo quando não acontece, há um certo desportivismo: “São coisas que podem acontecer sempre, e acho que foi bom ter acontecido, para nos pôr um bocadinho no sítio.”

A última pergunta sobre concertos encerra da seguinte forma: que frase teriam numa t-shirt, se tivessem só que usar essa camisola em todos os palcos que pisassem?

Após algum tempo para pensarem, as respostas. “Lock’n’loll,” diz Paulo. “À japonês.”

Selma tem uma mensagem um pouco diferente: “Tenho uma frase que me rege na minha vida, um versículo: 'Tudo posso naquele que me fortalece'. Usaria essa.”

“Ficaria muito bonito junto a Lock’n’loll”, graceja Paulo.

Passando agora pelo estúdio, a última vez que estiveram juntos a criar um novo álbum foi em 2007, a formar «Shangri-La». O que mudou?

“Muita coisa,” diz Paulo, “temos pessoas diferentes, vivemos muitas coisas musicalmente e do ponto de vista pessoal que nos alteraram e portanto alteraram a banda também, e acho que estamos melhores músicos, melhores compositores.” Não deixa de fazer um comentário mais pessoal. “Alguns estão melhores pessoas... eu acho que estou uma melhor pessoa do que há 5 anos atrás, e como tal acho que faço melhor música.”

E é esse o cerne da questão para os Wraygunn, o porquê de fazerem aquilo que fazem: são pessoas tocadas pela ideia de tocarem os outros através das canções que tocam e os tocam. “Queremos alcançar a felicidade nas canções. Estamos sempre a tentar fazer coisas que nos interessam, e como vamos mudando como pessoas, as coisas que nos interessam vão mudando também. É uma coisa natural em nós.”

E a Arte Bruta? “Nós não fazemos arte bruta. A Arte Bruta só aparece aqui como um sítio para continuarmos a ser fiéis a nós mesmos, porque os artistas não têm a noção que estão a fazer arte, só que estão a fazer algo que apenas o precisam de o fazer, e isso é uma ideia que, para nós, é muito importante e necessária.”

Desde logo, Paulo Furtado diz que não é um processo fácil, reunirem-se de novo e criarem coisas novas com a mesma química, uma química que só por si não foi imediata mas também procurada. “E a Arte Bruta é um sítio bonito para olhar enquanto estamos a construir essas coisas todas. Nem lhe chamaria beleza, mas fidelidade à arte pela arte. Fidelidade à nossa arte, à nossa música. E isso tem a sua beleza, mas só a posteriori.”

“Mesmo quando temos um conceito mais pré-definido e mais estruturado por trás, não deixa de haver um realismo e uma genuinidade da nossa parte enquanto o fazemos,” diz Selma. “Porque à forma como o fazemos depois incluem-se outros elementos que compõem o resto, e isso acaba por ser muito real, porque ele é feito das nossas influências e do nosso estado de espírito, sem pensar no que vai vender e no que as pessoas vão gostar. Sendo até um bocadinho não só introespectivo como até egoísta. São coisas muito naturais e também muito reais.”

Os próprios primeiros passos da composição são feitos com alguma isolação. Não é tanto uma confissão, mas uma constatação e afirmação de como os Wraygunn são e sempre foram: uma mentalidade própria muito pessoal de quem tem a confiança de que partilham o gosto com muita gente e tirar partido disso involuntariamente enquanto disfrutam o que fazem. Afinal, ficar à espera da aprovação dos outros seria apenas ficar à espera. Mesmo quando se pergunta de quem gostariam de receber um elogio, respondem logo que considerar alguém seria limitador.

Selma ainda pensa, mas diz que sinceramente não sabe. “Qualquer pessoa fica lisonjeada quando o seu trabalho é reconhecido. Mas honestamente não tenho ninguém que gostava que me passasse um “certificado de aprovação”. Isso eventualmente iria ser um obstáculo. A próxima vez apanhar-me-ia a pensar que talvez tivesse de fazer igual ou fazer diferente. É sempre bem-vindo e muito gratificante, mas não tenho assim ninguém – é algo limitador.”

“Não é assim tão importante,” reafirma Furtado, mas lembra: “Não é porque não nos importamos com as pessoas, é exactamente o contrário. Porque nós nos importamos com as pessoas, importamo-nos com a nossa arte. E como tal, a nossa arte tem de estar primeiro. A arte tem de ser egoísta e o artista tem de ser egoísta quando faz a sua arte. Quem tem de ficar feliz é a banda. E acho que a maior parte do público gosta de nós porque sabe disso. Nota-se na música. Felizmente, as pessoas sentem dessa maneira, o facto de ser a tua arte.” O verdadeiro artista é aquele então que é verdadeiro para o seu público, quer na sua música como na sua estética. Chega até a ser um aliado.

“A estética chega até a ser uma extensão daquilo que fazemos, mas não chega a ser o cerne de tudo. Ninguém sai de casa a pensar que quer ser cool.”

Então que cenário vêm por trás das suas canções? Muitas histórias, que cada vez são mais extensas. Mas numa descrição breve, como chamariam o seu trabalho?

“Wraygunn,” diz Selma, e “genuíno”, diz Paulo. “Acho que chega.”

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Entrevista por: Carolina Rocha
Foto: André Cepeda
Banda: Wraygunn

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