Que não se fale de crise, não se fale do fraco poder de compra que levou à transferência do Coliseu dos Recreios para o TMN Ao Vivo, no Cais do Sodré. Ainda assim, deste modo, o mal está feito, a menção lá está, e o backspace até agora imperturbável. Para além da fraca afluência à bilheteira, a verdade é que no domingo há muito pouca vontade de sair de casa, principalmente à noite, porque é preciso estar-se fresquinho para lamentar a segunda-feira como deve ser. Mas a mensagem aqui não é um “faz-te homem, menino!” pois a sala de espetáculos no Cais do Sodré que recebeu os The Walkmen foi bem preenchida.
Coube ao guitarrista Filho da Mãe, vulgo Rui Carvalho, o concerto de abertura. Conhecido por entre alguns membros do público, não faltam comentários sobre o “filho da mãe [que] parece ter doze dedos”. É discretamente, quase alienado, ao seu género, que se dirige ao público, mas é intensamente que se debruça sobre a sua guitarra e panóplia de pedais. Aqueles que não o conheciam foram facilmente conquistados pelo seu talento no dedilhar, pelo sentido de ritmo e organização que permite a construção de canções tão únicas quanto envolventes como e “Helena Aquática”, tema com o qual finalizou a sua meia hora de sonho.
No local aconchegado que é o TMN Ao Vivo, o trabalho de Filho da Mãe parece querer transbordar pelos cantos do recinto, trepar pelas paredes para se escapar. Ainda que a proximidade ao palco confira uma maior intimidade e atenção ao detalhe, principalmente sobre o que um músico realmente faz em cima do palco, o que é do maior interesse quando estamos perante um artista do género, a sonoridade do guitarrista é mais fluida quando tem mais espaço, quando desliza e invade o ar com menos obstáculos e quando ecoa menos. O que poderá ter soado sem mácula num auditório maior soou agreste, mais áspero nas suas arestas, mas dada a teatralidade do som e o cariz da própria atuação, essa natureza mais agridoce assenta-lhe como uma luva.
Os The Walkmen enganam muita gente na sua entrada. Às 10 horas em ponto, de cabeça baixa e discrição salvo para o brio na roupa que vestiam [alguém pergunta se alguém sabe qual é o aftershave do vocalista Hamilton Leithauser], parecem britânicos. Do género britânico que se associa às calças de tweed e cachimbos aos... domingos, talvez, e não aquela espécie mais avistada durante dias de Champions League ou Liga Europa nas cidades portuguesas, de cerveja na mão e camisola à volta da cintura independentemente da temperatura.
Quase sem palavras, é de rompante que começam a tocar, e assim continuam, como se tivessem um trabalho para fazer [que o tinham], mas que estivessem impacientes para o executar [que nós gostamos]. As primeiras notas de "Line By Line" causam logo alarido, apesar de serem o tom dócil mas irremediavelmente sentido de Leithauser e a sua guitarra a abrir as hostilidades. Este afasta-se do microfone, baloiça-se na ponta dos pés quando a canção se começa a preencher e aumenta de ritmo, assumindo uma posição que comanda o público, por vezes até com uma mão no bolso e com a outra no microfone.
“Thank you, thank you, thank you!” diz, em tom de showman, leiloeiro e Bob Dylan, tudo ao mesmo tempo. “Este é o nosso sítio favorito,” diz, e enquanto muita gente usualmente se pergunta quanto à veracidade dos favoritismos de muitas bandas, a verdade é que os The Walkmen são uma das raras bandas que deram provas dessa mesma admissão, com o seu álbum «Lisbon». Não deixa margem para dúvidas.
Entra "The Love You Love", dando lugar ao primeiro berro do vocalista, e ao conferir uma emoção tal que alguém diz em tom jocoso “magoou-se!”. De voz arranhada e desesperada mesmo quando tem por trás umas guitarras de tom upbeat, Leithauser consegue assumir tanto a postura de crooner quebra-corações como daquele rock’n’roller que quer mandar tudo à fava. De uma postura hiperativa extremamente contida à frente da banda, por vezes parece não saber o que fazer com as mãos, tal é o seu empenhamento. "Heartbreaker" é um tema no qual a audiência entra na onda sem sequer lhe pedirem, entoando o coro com muita vontade e braços no ar. A bateria e o baixo demonstram uma capacidade impressionante de consistência independentemente de se tratar de uma das canções mais recentes, mais refinadas, ou mais antigas e palpáveis.
Discreto mas com um sorriso constante nos lábios, é o guitarrista Paul Maroon que se parece divertir mais no palco. “Se o virem na rua, metam conversa, ele é um gajo porreiro,” diz Hamilton, o mesmo que há dez anos atrás, lhe partiu o braço numa escaramuça de brincadeira.
[Afinal, os The Walkmen conhecem-se, salvo o baixista Peter Bauer, desde os tempos do colégio católico. Já agora, vale a pena pensar nisto. ]
Hamilton tira do bolso um guardanapo e deixa-o cair aos seus pés. Uma setlist improvisada que deverá ter sido decidida ao jantar. "Blue as Your Blood" tem um pulsar de impacte forte ao vivo. A voz, apesar das suas falhas, ao terminar os versos com uma sílaba quebrada ou amordaçada, balança entre a claridade e o desespero, conferindo uma naturalidade que para uma banda que canta sobre corações partidos que perdem piedade, lhe fica bem.
Seguem "Angela Surf City" e "On The Water" e não se fale numa comparação quase inevitável com os The Strokes. Que as há, há, mas não esperamos que Leithauser, com as suas calças vincadas, fale das mulheres portuguesas ou se atire para cima do público como Casablancas. Mas o suor está lá, assim como na sua entrega, que não pertence só aos rockers mais puristas mas também aqueles que conseguem fazer “Doo whoop, shoowah, oowah” sem qualquer medo e preconceito. As guitarras levam as canções num sobe-e-desce, como se fossem montanhas, com caminhos-de-ferro pregadas pelo baixo, por onde percorre a locomotiva constante da bateria. Apesar das falhas [porque afinal, uma das características mais obnóxias de Casablancas é o berrar até não poder mais como se fosse fácil e ainda ter voz para mais três concertos a seguir], o alcance de Leithauser consegue chegar a Sinatra e voltar.
Não obstante, o público recebe "In The New Year" e mostra que gosta de ouvir. Fãs e adeptos recebem cada início de canção com aplausos e braços abertos, ou neste caso, levantados, acompanhados pelo ocasional grito. Não é de admirar que a banda goste de cá estar.
O compasso dos The Walkmen ao vivo compõe-se por um balanço entre a bonança e a tempestade, acalmando os ânimos com toques mais brandos e acústicos apesar da fraca interação com o público. Depois do momento intimista em "138th Street" , a audiência mantém-se quieta, até que alguém uiva, causando a gargalhada total. Leithauser ri-se “É verdade, está tudo muito silencioso. Os ingleses nunca se calam nestes momentos. Obrigada por serem tão respeitosos,” comenta.
Entra-se em "Donde está la Playa", onde o jogo entre a desconexão e a assimilação das notas da guitarra conquistam o espaço sonoro pela sua peculiaridade e sofisticação nada sombria. É quando as luzes se apagam e é só audível o acompanhamento da mesma pela voz do vocalista que se cria um momento íntimo, expectante, como se a luz tivesse ido abaixo e estivéssemos à espera do relâmpago e do trovão que o ladeia. A única tempestade é apenas emocional, com o crescendo emocional e de luzes que leva o folgo do público para lá do Rio Tejo. “You are so great!” Alguém suspira.
"All Hands and the Cook" e "Woe is Me" puxam pelo ritmo das pessoas de novo, mas sem pressas. É a preparação para o final da atuação, para onde as canções que seguramente acendem mais ânimos ameaçam presença. "Juveniles" soa entre a calma e as explosões [e não falemos das várias etapas do desespero e luto], e toma balanço para a carismática "The Rat", que apesar de velha, se assumiu como assinatura da banda. É só a pausa de "Love is Luck", de volta ao presente, que o público não é levado à exaustão. Pois foi seguido pelo hino "We Can’t Be Beat" que causou uma reação incendiária [alguém tirou a camisola], chegando ao clímax do concerto inteiro. O refrão de “oooh ooohs” permaneceu até ao momento de puxar a banda de volta ao palco para o encore.
Parabéns pelo sentido de humor à voz que pediu "Free Bird" dos Lynyrd Skynyrd após tantos gritos de discos pedidos quando o grupo volta ao seu posto. A setlist, essa, terá desaparecido entretanto. Foram-nos oferecidos então "I Lost You" e "Everyone Who Pretended to Like Me is Gone". Antes da canção ao jeito de 50s e Richard Hawley [que atuou no mesmo palco na semana anterior] "Another One Goes By", com direito a disco ball iluminada, é feita a apresentação da banda, sendo o baterista aquele com a maior ovação, meritória. Mas não esquecemos que os The Walkmen são, após 12 anos, músicos crescidos, longe dos dias de juventude louca e guitarras partidas que faziam parte do seu quotidiano, e refinaram tanto o seu estilo como a sua identidade, e, mais do que tudo, o talento que possuem. Walter Martin, multi-instrumentalista que chega até a mudar de instrumentos durante uma única canção, transforma um segmento que aparenta ser apenas masterizada quando é mesmo ele a arranhar a guitarra de tal forma que não se vê a mão, é apenas um exemplo dos ases que lá estão.
“E se eles ficassem por cá, já que gostam tanto disto?” brinca uma rapariga, de ombros encolhidos em ar coquette. “Olha que até não me importava!”
Texto: Carolina Rocha
Agradecimento: Everything is New
Banda: The Walkmen
Local: TMN ao Vivo, Lisboa
Data: 4 de novembro de 2012
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