[REPORTAGEM]: Mark Lanegan | TMN ao Vivo | 30 de Março de 2012



Depois de um dia que abafava, aproximou-se um vento húmido e frio ao anoitecer. Com nuvens escuras a aproximarem-se da foz do Tejo, trovoada ao longe, parece que Mark Lanegan encomendou o tempo de propósito para combinar com a sua voz alguns momentos antes do concerto começar. Foi rodeado de uma noite sombria e chuvosa que o cantor americano entrou no palco, sob o olhar atento de muita gente que, no máximo, eram crianças dos nineties.

O concerto começou à hora marcada no passado dia 31 de Março, no TMN Ao Vivo, com a apresentação dos belgas Creature with the Atom Brain. O vocalista Aldo Struyf é uma presença simpática, de sotaque acentuado sobre o microfone entre canções. A banda mostrou-se à vontade no palco e à frente do público português (“Real nice, real sweet. Thank you so much for coming so early.”), ao ponto do baterista pregar uma partida a Struyf ao interrompê-lo enquanto este se dirigia às pessoas da audiência. A boa disposição era visível, se não contrastante com as as canções pesadas, psicadélicas e lideradas pela guitarrada precisa de Michiel Van Cleuvenbergen.

Quando Mark Lanegan finalmente entrou em cena, todo vestido de negro como seria de se esperar, foi curiosa a reacção do público, como se se instalasse de repente um peso no ar que interrompesse qualquer conversa de conveniência e direcionasse a totalidade da atenção para o cantor. É aquele silêncio, aquela frequência magnética que se ouve quando se liga um jack a um amplificador com o volume particularmente alto, antes de estalar. A própria luz quase não alcançava a sua cara, por trás do cabelo desgrenhado, até ao momento em que se instalou por trás do microfone, mãos tatuadas a segura-lo firmemente, e quase a não larga-lo até ao fim. Por trás de mim, oiço “que sério...” para depois perceber uma resposta “Sempre!”.

O público é fiel e conhece Lanegan bem. Se o concerto de abertura pareceu leva-lo às planícies áridas do deserto norte-americano, Mark Lanegan praticamente deu-nos as boas-vindas a esse tipo de local, e embora não tivesse dito palavra até ao momento em que “timidamente” (e vamos concentrar-nos nas aspas aqui) agradeceu e apresentou os restantes membros da banda, a mensagem estava lá: Ponham-se à vontade neste deserto californiano, neste bar com cadeirões velhos, peçam um whiskey: vocês vão ficar aqui durante algum tempo.

E quando começa com o tema do álbum «Bubblegum», “When Your Number Isn’t Up”, de olhos fixos no horizonte ou fechados, a voz de Lanegan transporta-nos aqueles locais que lembram os filmes de série Bond e os cenários são iluminados apenas por candeeiros com luzes âmbar que criam sombras por tudo o que é canto e curva. O próprio palco estava iluminado de luzes vermelhas. Quando a cavalgada de gigantes de “The Gravedigger’s Song” (um dos singles do novo trabalho «Blues Funeral») começou, a única interacção que Mark tem com a banda enquanto esboça uma espécie de esgar para qualquer distância que estivesse a contemplar, é um aceno de cabeça para começar. É uma liderança silenciosa, de confiança com os restantes membros, ao mesmo tempo que se deixa levar pelo peso das cordas e da bateria e do por vezes lá, por vezes não, sintetizador. Lanegan é Mark Lanegan, e aquela voz inconfundível poderá funcionar e tocar no íntimo em muitos ambientes e grupos distintos, mas a verdade é que os músicos que o rodeiam são de uma qualidade que não deixa muito para o vocalista se preocupar, e concentrar-se no cerne das suas canções, na imagética que se crava por baixo da pele (e provavelmente, sob as muitas tatuagens de Lanegan).

Quando a canção “Hit the City” seguiu, o público junta-se em coro, como se querendo substituir a voz de back-up de PJ Harvey na versão original. E foi durante temas deste género que o público quase se atirava à primeira oportunidade para uma maior interactividade com a sombria presença de Lanegan. Não que o público não compreendesse ou conhecesse o semblante do cantor, não esperando mais do que aquilo com que se depararam (e desfrutando de cada momento), mas o público português é assim: puxa pelo cantor e, quando deparado com um raro momento de descontração, em que o esgar se transforma num sorriso muito subtil, aproveita para puxar por ele com mais palmas e assobios. Quando as canções começavam, bastava um poderio um bocado mais elevado para servir de desculpa para algum headbanging.

As canções seguem aos pares, e se não em duplas, em trios, entre os trabalhos de «Bubblegum», «Field Songs» e «Blues Funeral». Após a boa recepção e reposta da audiência a temas como “Riot in my House”, “Ode to Sad Disco” e “St. Louis Elegy”, houve aquele momento em que o cantor pareceu mais satisfeito, um segundo de “my work here was done”, talvez porque em muitos locais não houvesse tanto favorecimento ao último álbum (de onde estas três canções originam) em prole dos trabalhos mais antigos. Mas o público parece gostar do trabalho de Lanegan seja ele qual for.

Denota-se versatilidade sobre uma única linha: a máxima exploração de um estilo musical originado do desert rock e psicadelismo, com variantes para o mais electrónico e quase industrial. Tudo se balança no detalhe e precisão da guitarra (que foi trocada mais do que quatro vezes e antes que alguém o diga mais uma vez, sim, o senhor guitarrista lembrava o senhor Johnny Cash, é verdade), na versatilidade entre outras guitarras e teclas, a sequência ordeira mas imponente do baixo e da bateria, e a voz que soa a cabedal velho, ponta acesa de cigarro e asfalto de Lanegan. Foram autênticos assaltos de profunda introespecção e storytelling, de tal modo marcantes que, depois de sair do recinto para uma noite a ameaçar outra tempestade, pareceu que o verdadeiro trovão ficou lá dentro, a assinar autógrafos.


Alinhamento:
When Your Number Isn’t Up
The Gravedigger’s Song
Sleep With Me
Hit the City
Wedding Dress
One Way Street
Resurrection Song
Wish You Well
Gray Goes Black
Crawlspace
Leviathan
Quiver Syndrome
One Hundred Days
Creeping Coastline of Lights
Riot in my House
Ode to Sad Disco
St. Louis Elegy
Tiny Grain of Truth
~ENCORE~
Pendulum
Harborview Hospital
Methamphetamine Blues

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Texto: Carolina Rocha
Artista: Mark Lanegan
Local: TMN ao Vivo, Lisboa
Data: 30 de Março de 2012

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