Camané | Teatro Rivoli | 16 Fevereiro 2011



Uma guitarra portuguesa, a escrivaninha, dois copos de vinho à luz dos candeeiros, um contrabaixo. Uma cadeira, um sofá, outra poltrona, um telefone de disco, mais uma viola. Quatro paredes aveludadas de um quarto interior. Luzes apagadas numa sala repleta. Camané apresenta-se sentado, microfone na mão, com voz madura a contar do amor e dos dias numa peça de teatro que se quer sentimental, engenhosa e poética, como convém.

Um cenário intimista a fazer esquecer os nervos e o fadista a elevar a voz, a tornar maior a alegria e o desgosto, a comoção dos presentes. Camané contorce-se a cada palavra sentida: só por dentro de ti a noite escuta o que me sai sem voz do coração. E nós escutamos com reverência, quase a pressentir o próximo abalo. Vestido a rigor, longe das luzes e de mão no bolso, dá-nos as boas noites em jeito tímido e entrega-se às próximas notas da guitarra. A pose introspectiva facilmente se transforma em arrebatamento e, entre o público, são muitos aqueles que batem o pé ao som da música. Rodeado pelos três músicos que o acompanham (José Manuel Neto – guitarra portuguesa; Carlos Manuel Proença – viola; Paulo Paz – contrabaixo), Camané emociona enquanto canta, apela ao mais fundo da condição humana e evoca as primeiras memórias do fado - tinha ele sete anos - quando começou a cantar inspirado por Carlos do Carmo, Alfredo Marceneiro ou Amália Rodrigues.
A humildade transparece quando o ouvimos falar, percebemos que não é de grandes falas – cada um é para o que nasce – e Camané nasceu para embalar e contar histórias boémias através do fado. O amor inspira a vida, é a essência de tudo o que fazemos, bem ou mal. Entre uma e outra música o fadista atravessa o palco e volta a sentar-se, a meia-luz, até se deixar invadir pela escuridão. A plateia aguarda que algum candeeiro se acenda, sempre em silêncio. Camané apregoa a poesia com excelência. Nomes como David Mourão-Ferreira, Cesário Verde, Alexandre O’Neill, Fernando Pessoa ou Sérgio Godinho ganham novo fôlego por detrás das suas interpretações.
No palco, escrito a giz num quadro de lousa, pode ler-se em letras grandes: O amor é o amor, e depois? – frase inquietante de Alexandre O’Neill – e não sabemos ao certo se Camané responde às nossas dúvidas mais acanhadas, não sabemos se caímos na saudade (sentimento tão português, já o sabemos na pele) ou se a parafernália da rotina nos invade. Sabemos - e mais que isso, sentimos – o terror e o alívio de ter a nossa intimidade exposta na voz de quem conhece o abismo de cor, na ponta da língua. São histórias e relações do dia-a-dia que, ou nos tocam e arrepiam, ou então incomodam e, por isso mesmo, fascinam. Aqui não há lugar para a indiferença. Algumas palavras de ódio, algumas palavras de amor, a meu favor as paredes que insultam devagar, canta Camané, desta vez sentado.
De repente, os músicos saem do quarto improvisado e a música continua em gravação quase sem darmos pela súbita alteração. O fadista apaga as luzes e fica sozinho em palco, a cortina desce. A plateia levanta-se às escuras e aclama o artista com afinco e emoção.
Camané entra pela segunda vez, agradece o aplauso, e vai chamar os outros músicos. Mais um fado no fado: pedimos e ali o temos, visivelmente contente. Um Camané mais solto e animado, perdido nos acordes da guitarra portuguesa, a balançar o corpo enquanto põe a descoberto a saudade que traz do corpo de alguém: eu tenho um sonho doirado, é morrer cantando o fado nos braços de uma mulher. Mais uma vez, já de pé, os aplausos e os assobios pouco contidos tomam conta da sala: és grande!, ouvimos gritar.
Camané regressa pela última vez para cantar Sei de um rio, poema de Pedro Homem de Mello. Até quando?, perguntamos ansiosos, teremos de esperar para te ouvir novamente?

Numa noite de temporal, Camané fez-se grande e o Porto saiu à rua para o ver. Até ao próximo encontro com este timbre inigualável resta-nos ir repetindo e lembrando as memórias deste banquete de sensações.

Alinhamento:
Casa: Tentei fugir da mancha mais escura (David Mourão-Ferreira)
Emboscadas (Sérgio Godinho)
Súplica (Frederico de Brito)
Lembra-te sempre de mim (David Mourão-Ferreira)
Último Recado (Alfredo Marceneiro)
Maria II (Antero de Quental)
Porta Aberta (José Mário Branco)
Fado Livre (Joaquim Campos Silva)
Rua do Silêncio (António Sousa Freitas) / Lúbrica (Cesário Verde)
Depois que um Beijo me Deste (Maria Margarida Castro)
Ela Tinha uma Amiga (Manuela de Freitas)
Ausência (Maria Margarida Castro)
Abandono (David Mourão-Ferreira)
Tanto Me Faz (Miguel Novo)
Quadras (Fernando Pessoa)
Ser Aquela (Fernando Pessoa)
Piso Térreo (Alfredo Marceneiro)
Guerra das Rosas (José Mário Branco)
Porque Me Olhas Assim (Fausto Bordalo Dias)
E Por Vezes (David Mourão-Ferreira)
A Meu Favor (Alexandre O’Neill)
~Encore I~
Mais Um Fado no Fado (Júlio de Sousa)
Saudades Trago Comigo (António Calém)
~Encore II~
Sei de um Rio (Pedro Homem de Mello)


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Fotos: Ricardo Silva
Texto: Vanessa Silva
Agradecimentos: Fantasporto
Cantor: Camané
Local: Teatro Rivoli, Porto
Data: 16 de Fevereiro de 2011
Site Oficial do Cantor: www.camane.com

1 comentários:

maria Filomena disse...

O seu a seu dono. Os irmãos Ricardo e Vanessa têm-nos presenteado com o que de melhor se tem visto em fotografia e texto. Os concertos são descritos com tão grande mestria que, o mais comum dos mortais, se sente a fazer parte do espectaculo. À medida que as palavras são lidas sentimo-nos agarrados à magnitude do que foi/ é o concerto. As fotos têm expressão e o Camané, está juntinho a nós,mesmo tendo ficado em casa.Parabéns! Vamos reconhecer quem trabalha com profissionalismo. Obrigado

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